Pesquisadores e especialistas presentes no evento apontaram as principais dificuldades das mulheres ao acessar o procedimento no sistema pĂșblico de saĂșde.
O encontro tem como referĂȘncia a proposta do Projeto de Lei 1904/2, que prevĂȘ autorização para abortos legais até 22 semanas de gestação, mesmo em casos de violĂȘncia sexual. Também aumenta pena mĂĄxima para quem fizer o procedimento, igualando a interrupção da gravidez ao homicĂdio."Não existe estuprada que, por maldade, vai levar a gestação até 22 semanas por que quer ver o feto nascer prematuro, sofrer, ir para a UTI e ficar sequelado. Não existe essa maldade. Não atrasou porque foi culpa dela. Ela deixou chegar até esse ponto por causa do Estado brasileiro, que fechou todas as portas", disse OlĂmpio Moraes, diretor médico da Universidade de Pernambuco (UPE).
Debora Diniz, antropóloga, professora da Universidade de BrasĂlia e defensora dos direitos reprodutivos das mulheres, entende que a repercussão do projeto de lei foi pior do que a esperada pelos grupos que a defendiam. Por isso, segundo ela, o momento é de avançar na luta por uma justiça social reprodutiva, sem abdicar dos conhecimentos cientĂficos.
"A questão do aborto, como outras em saĂșde pĂșblica, não é matéria de contra ou a favor. Não é matéria para confundir e não falarmos sobre ciĂȘncia. As religiões tĂȘm que ser respeitadas, mas não são elas que determinam a vida pĂșblica e o bem comum. Que tal trazermos, a partir das semanas intensas de aprendizado sobre esse brutal projeto de lei, um exercĂcio de reflexão e ponderação sobre como nós podemos falar e como devemos continuar o debate pĂșblico sobre a urgĂȘncia da descriminalização do aborto? Descriminalizar não é legalizar. Temos evidĂȘncias sólidas que pode levar à redução do nĂșmero de abortos", defendeu Debora Diniz.
Elda Bussinguer, presidenta da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), disse que para além da pressão pelo cumprimento atual da lei, é preciso organizar uma reação pĂșblica da sociedade civil, por entender que o projeto vai além de uma questão moral ou religiosa.
"Esse é um projeto de poder sobre os corpos femininos, de silenciamento das mulheres. De coisificação dos corpos femininos. Precisamos quebrar o pacto de silĂȘncio que mantém milhares de meninas espalhadas por esse paĂs sendo violentadas todos os dias. Por seus pais, tios, irmãos, primos e mesmo religiosos, que rompem com todos os princĂpios que dizem defender e mantém mulheres violentadas e silenciadas", disse Elda.
A legislação em vigor no paĂs prevĂȘ que a mulher tem direito ao aborto nos casos de gravidez decorrente de estupro, se a gestação representar risco de vida à mulher e se for caso de anencefalia fetal. Mas o fato de haver essa previsão legal não garante que as mulheres consigam alcançar seus direitos da forma como deveriam.
"É uma polĂtica escondida. Dependendo do gestor no comando, ela desaparece, fica escondida. Se vocĂȘs procurarem no Brasil onde tem acesso a aborto previsto em lei, vão ter muita dificuldade pela internet. Eu consigo saber onde tem quimioterapia, pré-natal de alto risco, doação de órgãos, mas abortamento não é dado à população o direito de informação. TrĂȘs vĂrgula seis por cento dos municĂpios tĂȘm um serviço de violĂȘncia a abortamento previsto em lei. É muito pouco", disse OlĂmpio Moraes.
O diretor médico da Universidade de Pernambuco (UPE) lembrou que somente 6 das 27 unidades federativas disponibilizam informação pĂșblica sobre aborto nos sites das secretarias de saĂșde. E que uma gestante pode demorar, em média, de dois a trĂȘs meses até achar um programa que a acolha. Além disso, reforçou que as principais prejudicadas nesse cenĂĄrio são mulheres jovens, pobres e negras.
OlĂmpio Moraes endossou que os médicos obstetras precisam cumprir o que diz a legislação, principalmente porque a formação profissional deles jĂĄ prevĂȘ aprendizados relacionados ao aborto legal.
"Objeção de consciĂȘncia é um direito, mas quando vocĂȘ é recrutado. Médicos do SUS não estão aĂ para defender crenças. O nosso patrão é o Estado brasileiro. Para todos os obstetras que vão fazer obstetrĂcia agora tem as EPAs [competĂȘncias de determinada prĂĄtica médica]. HĂĄ 21 competĂȘncias que o médico tem que aprender para dizer que é obstetra. E ligar com casos de violĂȘncia contra a mulher e abortamento estĂĄ entre elas. Ele vai ser treinado para isso. Não pode dizer que tem objeção de consciĂȘncia. Se tem isso, vai fazer dermatologia. Quem paga é o SUS. Estamos trabalhando para que não haja essa desculpa, que não é aceitĂĄvel", disse OlĂmpio.
Fonte: AgĂȘncia Brasil